2 de julho de 2010

O homem e o remédio: qual o problema?

   Li um trecho desse texto em uma referência de um artigo publicado na Revista Cadernos de Saúde Pública. E fiquei admirada com a percepção de Carlos Drummond sobre o consumo de medicamentos na década de 80. Segue o texto na íntegra:
   “Ultimamente venho sendo consumidor forçado de drágeas, comprimidos, cápsulas e pomadas que me levaram a meditar na misteriosa relação entre a doença e o remédio. Não cheguei ainda a conclusões dignas de publicidade, e talvez não chegue nunca a elaborá-las, porque se o número de doenças é enorme, o de medicamentos destinados a combatê-las é infinito, e a gente sabe o mal que habita em nosso organismo, porém fica perplexo diante dos inúmeros agentes terapêuticos que se oferecem para extingui-lo. E de experiência em experiência, de tentativa em tentativa, em vez de acertar com o remédio salvador esbarramos é com uma nova moléstia causada ou incrementada por ele, e para debelar a qual se apresenta novo pelotão de remédio, que por sua vez...
   De modo geral, quer me parecer que o homem contemporâneo está mais escravizado aos remédios do que às enfermidades. Ninguém sai de uma farmácia sem ter comprado, no mínimo, cinco medicamentos prescritos pelo médico ou pelo vizinho ou por ele mesmo, cliente. Ir à farmácia substitui hoje o saudoso hábito de ir ao cinema ou ao Jardim Botânico. Antes do trabalho, você tem de passar obrigatoriamente numa farmácia, e depois do trabalho não se esqueça de voltar lá. Pode faltar-lhe justamente a droga para fazê-lo dormir, que é a mais preciosa de todas. A conseqüente noite de insônia será consumida no pensamento de que o uso incessante de remédios vai produzindo o esquecimento de comprá-los, de modo que a solução seria montar nosso próprio laboratório doméstico, para ter à mão, a tempo e hora, todos os recursos farmacêuticos de que pode necessitar o homem, doente ou sadio, pouco importa, pois todo sadio é um doente em potencial, ou melhor, todo ser humano é carente de remédio. Principalmente, de remédio novo com embalagem nova, propriedades novas e novíssima eficácia, ou seja, que se não curar este mal, conhecido, irá curar outro, de que somos portadores sem sabê-los.
   Em que ficamos: o remédio gera a doença, ou a doença gera repele o remédio, que é absorvido antes por nosso fascínio pela droga, materialização do sonho da saúde perfeita, que a publicidade nos imprime? Já não se fazem mais remédios merecedores de confiança? Já não há mais doentes dignos de crédito, que tenham moléstias diagnosticáveis, e só estas, e não, pelo contrário, males absurdos, de impossível identificação, que eles mesmos inventaram, para o desespero da Medicina e da farmacopéia?
   Há laboratórios geradores de infecções novas ou agravadores das existentes, para atender o fabrico de drogas destinadas a debelá-las? A humanidade vive à procura de novos males, não se contendo com os que já tem, ou desejando substituí-los por outros mais requintados? Se o desenvolvimento científico logrou encontrar a cura de todos os males tradicionais, fazendo aumentar a duração média da vida humana, por que se multiplicam os remédios, em vez de reduzirem as variedades? Se o homem de hoje tem mais resistência física, usufrui tantas modalidades de conforto e bem-estar, por que não pára de ir à farmácia e a farmácia não pára de oferecer-lhe rótulos novos para satisfazer carências de saúde que ele não deve ter?
   Estou confuso, e não sei se jogo pela minha janela os remédios que os médicos, balconistas de farmácia e amigos dedicados me receitaram, ou se aumento o sortimento deles com a aquisição de outras fórmulas que forem aparecendo, enquanto o Ministério da Saúde não as desaconselhar. E não sei, já agora, se se deve proibir os remédios ou proibir o homem. Este planeta está meio inviável.”