28 de dezembro de 2010

Triângulo da cínica modernidade

   Tive o prazer de receber ontem do próprio autor um excelente artigo, publicado no Jornal O Globo de 27 de dezembro, que aborda as questões relativas às agências reguladoras no Brasil. O pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz), Álvaro Nascimento, inova ao demonstrar toda a problemática envolvida na definição dos cargos das agências nacionais. Segue o texto na íntegra:

   “Semanas atrás, um diretor da Anvisa participou de evento organizado por fabricantes de medicamentos, setor regulado por ele. Um jornal de São Paulo informou que, durante o almoço, teria sido pedida a empresas presentes contribuição financeira para determinado candidato a deputado federal. Afirma o jornal que o diretor da Anvisa teria supostamente não só participado do almoço, como tinha interesse na eleição do candidato, pois fora seu secretário de Saúde na prefeitura de um município paulista. O diretor da Anvisa esclarece que “sempre manifestei de forma pública meu apoio à sua candidatura... por acreditar nas suas qualidades como gestor público”. Disse sentir orgulho de ter tido o apoio do mesmo candidato, quando seu nome foi aprovado pelo Senado para a direção da Anvisa. Mas ressalva que teve a sustentação de “muitas pessoas e segmentos da sociedade” e que jamais intermediou “qualquer contato para obtenção de doações para campanhas eleitorais”. Dias depois do almoço, segundo o jornal, empresas presentes ao evento depositaram R$ 279 mil na conta do deputado, já eleito. 

   Independentemente das dimensões éticas, legais, morais, políticas e até filosóficas que cercam este e outros fatos similares, uma reflexão se impõe sobre a forma de indicação de dirigentes das agências reguladoras pelo Executivo e sua aprovação pelo Senado, sejam elas dos setores de saúde, aeroviário, de telecomunicações etc. Até que ponto o modelo brasileiro de “agencificação” não está geneticamente comprometido com uma lógica que estimula inaceitável conflito de interesse entre as direções destes órgãos e os setores regulados? Este modelo não estaria comprometido por um processo de captura destas agências pelos setores a quem deveriam fiscalizar? 

   Ao olhar de perto este modelo, identificamos o que podemos chamar de “triângulo da modernidade cínica”, que faz com que os interesses dos cidadãos se tornem meras peças de proselitismo regulador. Imagine-se um triângulo. No primeiro vértice, temos o Senado Federal, responsável por aprovar todos os nomes de dirigentes das agências. No segundo vértice temos os dirigentes das agências, já eleitos e responsáveis por regular, fiscalizar e punir as empresas reguladas. Essas, são o terceiro vértice. Este triângulo representaria a “modernidade”, pois asseguraria que a sociedade (via Senado) estaria elegendo dirigentes com autonomia e mandato assegurados por lei para agir — teoricamente livres de pressões — em defesa da própria sociedade. O cinismo do triângulo reside em um fato que, de tão próximo aos nossos olhos, é difícil enxergar. Entre o setor regulado (terceiro vértice) e os senadores (primeiro vértice) há o mecanismo corruptor do financiamento de campanhas, que transforma em pó a concepção inicial que justificou o modelo das agências, baseado em uma pretensa autonomia gerencial de seus dirigentes em relação aos interesses políticos que, habitualmente, refletem os poderosos interesses econômicos dos setores regulados. 

   Ninguém menos autônomo e livre para tomar decisões que um dirigente cujo mandato é instituído por um Senado pesadamente financiado pelas empresas cuja atuação ele deveria constranger. O “triângulo da modernidade cínica” desnuda o fato de que, longe de superar o antigo problema das eventuais interferências políticas, o atual modelo de “agencificação” institucionaliza a interferência política (leia-se a dos setores regulados) na gênese de um sistema que demonstra, quase que diariamente, sua incapacidade de defender os interesses da sociedade. Longe de incorporar conceitos e práticas modernas, transparentes e socialmente participativas da administração pública, nosso modelo de “agencificação” exibe o atraso, na medida em que incorpora (graças ao financiamento privado de campanhas) evidente conflito de interesses, que traz como consequência um processo de captura pelos setores que deveria regular”.   

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